terça-feira, 22 de março de 2011

Relatos de um quase assassino


Eu encarava aquele chão sujo no qual eu havia estado minhas últimas noites. Cuspia nele como se fosse culpado pelo álcool que ardia em minha garganta e que agora arde em meu peito também. Eu enterrarei minha alma quando ela estiver perdida, subjugarei meus medos insanos, que não me deixam lúcidos o bastante para mantê-la intacta desse enredo escrito com sangue.
Sua inocência não estar mais aqui querida, e por isso, tudo em minha volta se tornou os pecados que agora profano com o corpo que você já não pode tocar mais.  Foi seu sangue que escorreu naquela noite, é o sangue do assassino que escorrerá nessa e é a mão de outro que irá derramá-lo. Não consegui manter a culpa presa na gaiola e hoje ela grita por liberdade, está dando lugar à vingança, cruel e destemida.
Serei como o demônio que protege seu anjo, me tornarei naquilo que um dia retirou sua vida, para vingá-la. Sei que isso estará indo contra sua fé, mas eu agora fui obrigado a criar a minha, já que a sua não me trouxe respostas concretas, para ativar novamente o bombear de sangue nesse coração tenebroso.
A raiva possuiu meus olhos e eles clamavam por ver o sangue daquele que fez o seu jorrar. Meus passos lentos pela sarjeta não correspondiam ao pulsar forte de meu coração que se sentia a caminho de uma estrada sombria e tão desejada. Talvez eu seja perdoado por não estar roubando a vida de um inocente e sim de um cruel que arrancou as asas de um anjo. Um anjo que eu amava.
Direcionei a visão iníqua ao assassino que estava andando pelos becos escuros à procura de outra vítima, talvez outro anjo para roubar as asas, mal sabia que a “vítima” dessa sombria melodia noturna seria ele. E que o sangue que jorraria vivo pelas ruas vazias seria o que um dia fervente em veias derrubou de uma vida inocente e que levou com ela outra vida, a minha.
Jorrei o líquido num lenço branco, minhas mãos iniciantes tremiam, mas dentro da minha alma tremia também o desejo pelo pecado. Eu tinha como cúmplice um amor que ficou doente. Segurei nos cabelos do assassino e pressionei o lenço em seu nariz com mais força que o necessário. A respiração que saiu de minhas narinas era quente, ácida e me matava junto com o assassino.
Arrastei-o até um velho apartamento ali abandonado. Joguei-o no chão imundo da sala. Eu o encaro com nojo, com ódio, esse último percorre minhas veias como um ladrão que invade a casa de um milionário à noite. Temeroso, mas irredutível. Eu poderia desistir naquele instante, se o rosto de minha doce Emy não tivesse aparecido em minha mente, com o sangue servindo de moldura para seu corpo. Maldito assassino que tirou sua vida, maldito assassino no qual me tornarei.
Lentamente aquele homem ali no chão abria os olhos. Eu olhei para a janela, preocupado que alguém estivesse nos vendo. Não poderia correr o risco de passar o resto do que sobrou de minha vida, atrás de uma cela, com lembranças trancadas na mente.  Coisa de iniciante. As ruas dali sempre estiveram vazias. Tal qual estarei quando acabar com esse tormento. Não me restará nada, nem mesmo o ódio.
- Onde estou?- perguntou o assassino.
- A caminho da sua morte- respondeu o outro. Sim, me tornarei um.
- O que está fazendo? Quem é você?- perguntou, ele até parecia ter um coração agora, mas não se lembrou dele quando possuía uma arma na mão. Talvez eu não possua mais um, agora que estou com uma também.
 - Eu? Sou o viúvo da mulher que você tirou a vida para roubar uma jóia. Sou um ninguém que agora percorre por ruas que em nada me alteram. Sou o homem que chora amargurado pela morte de sua amada inocente. Sou um insano que está a sua frente prestes a solidificar essa insanidade. Sou aquele que fará seu sangue correr, para você saber como é ver o sangue se esvair. Eu poderia matar a mulher que você ama, mas você não sabe nem o que é isso. Eu? Serei seu convidado de honra para o cargo de assassino de sua própria vida.
O outro assassino que estava comigo nessa sala deixou uma lágrima cair sobre a face. Uma fraqueza bateu em meu coração, mas não era o suficiente para dar um freio ao ódio que por minhas veias percorria.
-Estás com medo?- perguntei com um sorriso sádico.
-Não- ele disse- quero que me mate.
-Ah, então além de assassino és também masoquista?
-Será que não enxergas?- ele gritou, estava furioso.
-A sua crueldade?
-Não. A nossa! Há dois anos mataram meu filho de seis anos de idade, pelo simples fato dele ter derrubado outro menino de uma bicicleta. Crianças. Mas o pai da outra criança não se conformou com a ingenuidade de meu filho e o afogou num lago. O que eu fiz? O puxei para uma rua vazia e deixei seu sangue jorrar até que seu corpo ficasse seco, pálido. Acontece que as coisas não aconteceram como eu pensava, eu não tinha me conformado com a morte daquele assassino. O meu filho ainda me fazia falta, eu ainda me sentia vazio.
-E qual a culpa de minha mulher nessa história?- Gritei com uma fúria constante.
-Nenhuma- ele respondeu de cabeça baixa- ela foi apenas mais uma que apareceu na frente desse assassino no qual me tornei. Por isso, te peço que me mates para que tenha um fim esse ciclo vicioso. Parar corações torna-se um vício que como qualquer outro, não se pode controlar.
Deixei a arma que eu possuía em minhas mãos de dor cair. A raiva ainda circula por dentro de mim. Mas as palavras daquele assassino, agora me impediam de me tornar um. E se eu não me conformasse com a morte dele? E se eu deixasse viúvo outro homem que assim como eu se tornaria amargo? E se essas ruas vazias fossem as cúmplices de outros amargurados desejosos de vingança? Não, não preciso me tornar um assassino para vingar a morte de quem eu amo, nem para vingar a minha também.
Enquanto eu mantinha meus pensamentos que agora traziam um pouco mais de lucidez, ouvi uma explosão em minhas costas. Era um tiro, mais um que penetrava em meus ouvidos, mais um que me fazia sentir dor. Dessa vez, a dor havia se tornado sólida. O sangue que agora jorrava, não era o que havia sido planejado para essa noite. O sangue que percorria aquele chão era o que passava quente por minhas mãos, era o meu.
-Desculpa, mas como eu já disse não se pode controlar- disse o assassino ainda chorando.
Fechou a porta do apartamento. Fechou a porta da minha vida. Talvez agora eu não me sinta mais vazio. E enquanto meu sangue desce veloz pelo chão, eu imagino se foi assim que se sentiu Emy. Enquanto minha vida se esvaía, meu amor parecia estar se reencontrando. Então querida, não sinta mais dor, estou chegando.

Pauta para o Bloínquês- 59ª Edição Conto-história.

 Dedico esse conto ao meu escritor favorito de contos de terror- Kaury Rocha- ele que me permitiu passear com seu personagem por alguns minutos, para me inspirar nesse nada prolixo conto, espero que gostem. 

12 comentários:

  1. confesso que até pensei em parar de ler. Lembrei que o divino sempre está no final, entao, continuei. Explendido texto. Tocante!
    fico feliz de está seguindo o seu blog, flor. Quando puder, dê uma passada no meu tbm..
    bjs, Indy.

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  2. valeu a pena continuar a leitura.
    Amei demais.
    Nossa você descreveu o cenário, os sentimentos, os personagens divinamente bem.
    Parabéns.
    adorei a frase quase final- "-Desculpa, mas como eu já disse não se pode controlar- disse o assassino ainda chorando."
    Parabéns mesmo

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  3. Eu sempre me pergunto como alguém consegue escrever tanto assim, continuar uma história que nos faz querer ler até o fim. Eu não consigo Huahua.
    Gostei Jay, no finalzinho eu já estava achando que o assassino tinha se arrependido e tudo, mas aí quando ele atirou no outro, levei um susto rs. Mas eu gosto de textos assim que nos surpreendem *-* E adorei como você descreveu cada detalhe, nos fez imaginar perfeitamente toda a cena.
    Bgs :*

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  4. Lindo. Lindo. Lindo. Enfatizado propositalmente para tentar expressar o quão maravilhosa foi essa leitura para mim, confesso que livros de suspense não me fascinam, digo, a minha curiosidade é tamanha que quando os leio sinto que as palavras passam em velocidade alta e mal posso prová-las do jeito que gostaria, porém, estou cultivando um novo gosto, isso graças às novas leituras que ando tento, e com certeza essa é mais uma delas. Uma esplêndida leitura, cheia de mistério, de sentimentos que se confrontam, de contradições que se misturam, pessoalmente eu gosto quando a divisão de bem e mal confundem-se, gosto quando há uma ligação memorável entre ambos os lados, que acaba tornando apenas um. Jay, querida, eu fico aqui imaginando a minha sorte de poder desfrutar de tamanho talento que se evidencia a cada nova leitura que pratico aqui. Esse texto em especial é um dos melhores que já li aqui, o silêncio que ele me proporcionou ainda grita nos quatro cantos da minha mente.
    Dessa vez não irei desejar-te sorte no Bloínquês, acredito que não mais precisa dela, quando se há esse grandioso talento pulsando em si e que se mostra através de suas palavras vivas.

    Um beijo.

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  5. Jay, eu não tenho o link-me não :s Mas, de qualquer forma, obrigada pelo elogio! Beijinhos :*

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  6. Que final surpreendente!
    Eu pensava que o assassino tinha se arrependido, mas nem foi /:
    Essa história é mt trágica, fiquei com pena do cara, ele queria vingança, e sei lá. Nem condeno essas pessoas. Matar outra pessoa é errado, e não vai trazer ngm de volta, mas a dor que a pessoa sente ao perder alguem que ama deve ser enorme demais. Deve corroer o coração, e por isso eu não condeno ngm que quer fazer justiça com as próprias mãos.
    Enfim, adorei Jay *-*

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  7. Esse texto só reforça minha tese de que nenhum crime acontece sem motivo, ninguém se torna um monstro à toa. E o final desse texto foi ótimo, inesperado pra mim.

    Foi uma bela leitura, Jaynne, boa sorte pra gente nessa edição.

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  8. Esse texto é excepcional!
    Muito, muito criativo. E surpreendente.
    Eu também acho que os crimes vem acompanhados de todo um histórico de influências ou traumas que motivam as pessoas a cometê-los. Mas não acredito em determinismo, acho que sempre há uma chance de mudança, uma maneira de recomeçar, talvez a chance do assassino da história fosse aquela, de buscar o perdão do outro e tentar recomeçar, mas ele preferiu continuar com seu "vício", e continuar a vitimar pessoas inocentes, infelizmente.

    Torço por você amiga! Boa sorte.
    Beijão ♥

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  9. "A dor havia se tornado sólida".

    Parece que eu estava vendo a cena, sentindo dor, etc... Significa que está muito bem narrativo. Esta visível ao leitor. História boa, eu tiraria alguns excessos, mas é apenas minha opinião,m não fica braba rsrsrs
    Do tipo, muitos pronomes "eu", alguns adjetivos a mais, mas isso é porque estou fazendo às vezes de "advogada do diabo", só para não dizer que está excelente! Comentei o teu poema anterior, mas nem sabia o que dizer.
    Sinto que você em poemas, está muito, mas muito bem. E em contos, coisas a trabalhar, mas no caminho do livro!!!
    Sucesso amiga!
    http://anaceciliaromeu.blogspot.com

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  10. Adorei! Apesar do tamanho do texto, não consegui parar, tive que ir até o fim. Espero que você ganhe no projeto Bloinques porque, sinceramnete, o texto está lindo!
    Ah, aproveitando, há vagas abertas para a equipe do blog e gostaria muito que você se inscrevesse lá!

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  11. Amiiga, parabéns pelo 2º lugar no bloínquês! Apesar de merecer o 1º.
    Continue nesse caminho e busque sempre se superar. Você vai longe! E você sabe disso.

    Bjinhos ♥

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  12. ESSE SEU TEXTO NOS PRENDE A ATENÇÃO DE UMA FORMA INDESCRITÍVEL.... JAMAIS PODERIA EU TER TAMANHO TALENTO PARA ARRASTAR AUTOMATICAMENTE NOSSAS MENTES A SEGUIR-TE, COMO UM CANTO DE SEREIA.... MOSTRA O HUMANO E O INUMANO POR DENTRO E POR FORA....SENTI-ME DENTRO DA HISTÓRIA, COM EMOÇÃO, MEDO....(EU NAO TENHO MEDO, MAS SENTI O DOS PERSONAGENS RSRSR). NEIJOS DE QUEM TE GOSTA MUITOOOOO

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